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10 de abr. de 2011

A HISTÓRIA DO OFICIAL DE JUSTIÇA

Os Amantes / René Magritte - 1928



A HISTÓRIA DO OFICIAL DE JUSTIÇA 
Conto / de Pedro Luso de Carvalho

O circunspeto Romualdo era um bom oficial de justiça. Durante mais de dez anos executou com zelo o seu trabalho. A todos, no Forum, mostrava-se simpático, mas procurava impor certa distância para resguardar sua intimidade. As pessoas que o conheciam - juízes, promotores e serventuários da justiça -, dispensavam-lhe merecida atenção.

Essa pessoa de conduta ilibada, como diziam seus colegas, saiu certo dia, após o almoço, para fazer uma citação a três quadras de sua residência. Antes de acionar a campanhia da casa, onde residia a pessoa que procurava, o oficial de justiça retirou de sua pasta a cópia de uma petição, com o mandado judicial, e viu que iria citar uma mulher de nome Mafalda.

Apertou o botão da campanhia e aguardou um pouco. Uma mulher esguia e sedutora apareceu à porta, fazendo com que Romualdo desviasse o olhar, embaraçado. Disse-lhe qual o motivo de sua visita, e entregou-lhe um documento para que o assinasse. Mafalda devolveu-o assinado ao oficial de justiça, que o colocou na pasta, e depois ao retirar-se, fez-lhe um gesto amistoso como forma de agradecimento.

No dia seguinte, no Forum, Romualdo foi avisado por um colega seu que uma mulher queria falar-lhe ao telefone. Para sua surpresa, era a senhora que citara no dia anterior. Perguntou-lhe no que poderia ajudá-la e Mafalda surpreendeu-lhe: "Queria convidá-lo para tomarmos um cafezinho ou um aperitivo, no final da tarde". Educadamente, o oficial de justiça recusou o convite. 

Mafalda insistiria nesse convite até que Romualdo cedesse, o que ocorreu em menos de um mês. O encontro deu-se na casa de Mafalda, no final do expediente. A partir desse dia, os encontros nos finais de tarde tornaram-se rotineiros. Aos sábados e domingos, Romualdo desdobrava-se em atenção à esposa Eulália, e à filha. Depois de alguns meses, um sentimento de culpa sorrateiro começaria a abatê-lo.

Passados dois anos, Romualdo mal suportava o desgaste emocional pela vida dupla que levava; Mafalda, ao contrário, apegava-se mais e mais ao amante, e a paixão fugia-lhe ao controle, sem suspeitar que o sentimento do amante tomava direção oposta: a paixão que quase o fez enlouquecer não era mais a mesma do início, que agora aos poucos esmaecia.

O oficial de justiça antevia sua volta à vida rotineira: a família, os amigos, os colegas do Forum. Esses pensamentos deram-lhe a sensação da mais completa paz, o que fez com que tomasse a decisão de falar desses sentimentos à amante. Estava decidido a falar-lhe na sua próxima visita, que deveria ser a última. E assim acorreu: Romualdo dispensou rodeios, e, sem olhar nos olhos de Mafalda, disse-lhe que estava tudo acabado. E, de súbito, levantou-se e saiu às pressas.

Mafalda sentiu que iria morrer. Permaneceu por longo tempo sentada, o olhar pétreo, fixo na porta por onde Romualdo saiu. Com o corpo rígido, parecia imantada à poltrona, até que, aos poucos, foi se conscientizando do que se passara. Não derramou uma única lágrima. Simplesmente não aceitou essa ruptura e decidiu que não desistiria do amante. "Ele não tem o direito de me deixar", repetia para si mesma.  

A amante passou a seguir todos os passos de Romualdo: procurava-o todos os dias no Forum, e quando não o encontrava, deixava-lhe recados para serem entregues por seus colegas. Nervoso, lia as ameaças que lhe eram feitas. Em todos os lugares, o oficial de justiça deparava-se com Mafalda: quando saia de casa, quando deixava o trabalho, e até no curso das diligências, que fazia todos os dias, no desempenho de sua função. À noite, as ligações telefônicas não cessavam. Ele mesmo atendia ao telefone, ouvia as queixas de Mafalda, e, sem responder-lhe, desligava o aparelho.

Passados alguns dias, já tomado de absoluta exaustão, Romualdo encontrava-se em casa, no seu pequeno escritório, separando os documentos para as citações que deveria fazer naquele dia, quando a esposa foi lhe entregar um pequeno envelope fechado.

- Um menino acabou de entregar-me - explicou a esposa, um tanto assustada com a reação estampada no rosto do marido.

Romualdo esperou Eulália sair para abrir o envelope. Desdobrou a folha de papel e logo reconheceu a letra de Mafalda. Um sentimento de desgraça deixou-o abatido. No bilhete, a amante dizia que iria à sua casa para contar tudo à esposa.

O oficial de justiça voltou a sentar-se, abalado. Com as costas da mão, afastou os documentos que estava analisando e colocou o bilhete sobre a mesa. Por mais de uma hora ficou ali olhando aquele pedaço de papel branco cheio de rabiscos ameaçadores. Releu o que estava escrito no bilhete, uma, duas, três vezes. Depois, ficou apenas olhando um horizonte imaginário, mal suportando a pressão a que estava submetido.

De repente, tomado de incontrolável fúria, Romualdo apanhou o revólver e saiu em disparada, mal enxergando por onde corria. Corria sem nada ver à sua frente. Tenso, apertava com força a arma, sem parar de correr até chegar à casa da amante, quando, no momento em que a viu, à porta, sentiu uma incontrolável rigidez na mão, seguida pelos contínuos repuxos da arma.

Passado algum tempo - Romualdo não podia estimar sua extensão-, encontrava-se ainda em frente à porta, mal se equilibrando, os olhos ardendo, a camisa encharcada de suor, quando, às suas costas, ouviu os estalidos das algemas que lhe eram colocadas.

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